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domingo, 23 de agosto de 2009

Andar Modelo - Filipa Venâncio (15 de Maio a 30 de Junho de 2009)

Filipa Venâncio manifesta, no seu largo currículo
artístico, uma insistente exploração da pintura cujo tema são os espaços interiores e os objectos que lá podem ser encontrados. Trata-se de uma pintura que não representa o ser humano, nem o corpo, nem a figura, mas que os refere constantemente através dos interiores solitários, porém vivenciados, de modo tácito, por pessoas. Quando a artista aproxima o olhar aos pequenos objectos do quotidiano, fá-lo de modo a potenciar referências históricas, pessoais e sociais, que remetem para o universo pop da dignificação do aparentemente banal, enquanto produto de massas. E potencia também essas referências através da recuperação simbólica de objectos e atitudes esquecidas, mas carregados de intensa significação poética.
Mais uma vez, operando uma síntese, Filipa usa de espaços e de objectos, e desconstrói a identidade da casa, nesta instalação «com pintura e tudo» (citando aqui a exposição de Isabel Santa Clara, na casa-Museu Frederico de Freitas, nos anos 90). A artista propõe um percurso pelo espaço que se (in)alterou com o tempo, e que de fortaleza passou a ser museu. Agora nem casa, nem apartamento, nem fortaleza, mas ainda museu ­– no que de museu há na atitude de arrumação dos objectos expostos, de modo a criar um ambiente semiótico conciso.
O diálogo entre a pintura, enquanto objecto pendurável que faz parte do espaço interior que se habita, e os móveis que se usam, é um diálogo circular, num confronto em espiral entre a representação e a realidade matérica (da pintura e dos objectos). Povoa-se o vazio das paredes e do chão com uma vibração cromática e volumétrica que pontua o espaço de um modo, dir-se-á, supenso. Seguindo caminhos já apontados em outras mostras, a artista joga aqui com a deslocação, com a interferência e com o acumular de memórias descontextualizadas q.b., criando uma estranheza formada de vários tons e nuances diversificadas, ao longo das «assoalhadas» vestidas de casa.
Neste contexto, a participação de Carlos Valente (eu) introduz o movimento e o tempo da imagem vídeo, a imagem do outro (que sou eu), a imagem de quem observa e prolonga o seu ponto de vista crítico – verbalmente concretizado nestas linhas – acerca da exposição, na exposição mesma. O vídeo acontece numa peça de mobiliário, um televisor de ecrã plano. Trata-se também de um equipamento que pertençe a essa mesma familia de objectos concebidos para ocupar espaços caseiros, e não só.
O design de interiores está «quase» presente graças à construção de pequenos apontamentos de ambiente. A colaboração da loja Intemporâneo, enquanto fornecedor activo no projecto, com a artista enquanto cliente real, permitiu a obtenção de ambientes que não recriam uma loja de mobílias e nem sequer uma casa, mas que se situam no limbo. Permanecem a meio caminho entre o espaço de exposição comercial de bens móveis, de mesas, cadeiras, tapetes e candeeiros e o espaço eternamente provisório que é o lar.
O choque é subtil, no confronto entre o novo e a tradição. Este «medir de forças» entre peças de mobiliário reflecte-se na pintura que, ironicamente, coloca em jogo diferentes «choques-subtis» de relação. O diálogo entre peças de diferentes procedências estilísticas e temporais, quer presentes quer representadas, faz-se com algum humor e com forte gosto retro, bem patente nas escolhas da artista e que, certamente, encontramos ao longo do seu percurso artístico.
Nas pinturas ninguém habita os espaços, a não ser mediante figuras contidas em objectos-imagem, como num televisor. Cada quadro lembra um estudo, uma hipótese de arrumação, ou talvez uma presença de outrora; uma ocupação perdida no imaginário de um tempo impossível de mapear, porque fictício. O deambular pelo(s) andar(es) sugere um modelo de habitação expandido, formado por habitáculos ora contíguos, ora interrompidos por zonas de ligação austeras e despojadas de intervenção.
Filipa Venâncio apropria-se da outrora-fortaleza-agora-museu e propõe-nos um olhar filtrado pelo enmascaramento dos objectos: criando funções inacabadas, esboços de estar, de descansar, de esperar, de comer, de dormir, qual sonho (im)puro e diluído, como aqueles que temos de vez em quando e que nos deixam a sensação dúbia de termos estado ali, com toda a nitidez do mundo real mas, irremediavelmente, num sonho.



Carlos Valente
Maio 2009



Esta mostra poderá ser vista até ao próximo dia 30 de Junho.




Museu de Arte Contemporânea do Funchal